Luiza de Farias nasceu em Recife e desde criança habita o interstício entre a capital pernambucana e sua vizinha, Olinda. É formada em Design pelo Instituto Federal de Pernambuco. Fez Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Pernambuco. É pós-graduada em Design e Arquitetura de Espaços Efêmeros. Atualmente, é mestranda em Arquitetura na Universidade Federal do Rio de Janeiro, abrigada no Laboratório de pesquisa em Arquitetura, Subjetividade e Cultura. Cria e escreve, por ofício e porque precisa.
Recentemente, o Twitter estava em polvoroso com a volta de Succession, série da HBO em que o dono de um grupo de empresas milionárias escolhe entre seus filhos um sucessor para gerir seus negócios e herdar seu enorme poder econômico e político. Parecendo por vezes uma releitura do Rei Lear shakesperiano, em que o personagem principal também se depara com a questão sucessória diante do enfraquecimento do próprio corpo, o final da segunda temporada de Succession havia deixado uma certa esperança na construção de um gancho tentador: a perspectiva de destronar o “rei” insensível e egoísta a partir da traição do seu filho preferido ao “trono” — no caso contemporâneo, ao cargo de CEO de seu grupo de empresas. No entanto, diferente da peça de Shakespeare — onde podíamos encontrar personagens por quem torcer, como Cordélia — seu filho não é alguém que aspire qualidades. Na verdade, ninguém da série é. Apesar da densidade e das multitudes sensíveis que os roteiristas apresentam para nós de cada um dos filhos e aspirantes à sucessão — suas dores, traumas infantis, suas angústias e o desejo comum em agradar uma figura paterna inacessível — nenhum deles é realmente melhor do que o pai. O objetivo do filho “traidor” é expandir o poder do monopólio do pai a novas searas tecnológicas, com um verniz de responsabilidade moral. Os sofrimentos dos personagens permitem-nos relatar com eles, acessá-los enquanto humanos, mas nossa empatia não consegue encontrar neles uma figura inspiracional, alguém que irá fazer melhor do que o anterior.
Essa certa perda de fé em um futuro melhor, permeado por uma constante repetição de padrões que não nos oferece escapatória de um futuro predestinado — que também pode ser vista no final de outra série recente e igualmente comentada da HBO, White Lotus — parece ser uma tônica de nossos tempos. Talvez hoje preferimos escrutinar psicologicamente personagens falhos e reais, com os quais conseguimos nos relacionar, mas que parecem não oferecer outra saída do que aquelas já encontradas e previamente apontadas. Produzimos uma espécie de arte que nos paralisa e, com isso, nos arranja tempo para que possamos pensar e refletir sobre as misérias cotidianas, ambientais e tecnopolíticas, mas que, no entanto, não nos envolve a ponto de nos mover em direção a novos sonhos comuns. Distopias têm sido presentes (e rentáveis) na produção literária e cinematográfica recente. Black Mirror (2011); o ressurgimento do Conto da Aia (1985) como sucesso televisivo (2017); releituras do novo mundo huxleyano (1932), do 1984 orwelliano (1949), e do horizonte incendiário do Fahrenheit 451 (1953) são alguns exemplos de revisita a futuros distópicos. De certa forma, uma sensação de fim do mundo, semelhante àquela que o pós-guerra despertou, aguçou o interesse por produções que nos confrontam com alguma espécie de apocalipse biológico, tecnológico ou político. Mas as formas e as possibilidades narrativas que estas histórias distópicas apresentam dos futuros são diferentes. E também fazem emergir diferentes afetos e sensações.
Nesse ponto, lembro-me de uma amiga querida, professora e artista visual, que há uns anos me disse que vínhamos, pelo menos hegemonicamente, produzindo uma “arte triste”. Uma arte que denuncia, que critica, mas que não nos inspira à construção de futuros outros. E, apesar de gostar bastante da profundidade analítica sobre as conjunturas estruturais e psiques dos personagens na produção audiovisual contemporânea, Black Mirror, White Lotus e Succession (até agora) fazem parte deste rol de construções elaboradas de uma “arte triste”. Densas e elaboradas construções de um mundo opressor e traumático, sufocado, mas que não conseguem esquadrinhar para nós outra escapatória. Não vou dizer que imaginar estes outros futuros seja fácil. É difícil falar sobre um outro horizonte de uma maneira que não seja caricata, ingênua ou superficial. Mas, provocada pela fala da minha amiga, fui atrás de histórias que me trouxessem um futuro menos paralisante.
Foi assim que encontrei Os Despossuídos (1974) de Ursula K. Le Guin. Este livro nos engaja em um futuro complexo que, diferentemente da repetição contínua de um sistema traumático sempre de alguma forma perpetuado, nada nos dá como definitivo. Ao contrário, a história é permeada de questões contingentes, sempre em iminência de mudanças — como podemos dizer que é a vida. E este estado de emergência desamparado — como nos diria Vladimir Safatle no Circuito dos Afetos — pode nos inspirar a se apropriar de uma práxis, uma prática reflexiva, do presente para construção de outro futuro. É uma “arte motora”. Refletimos enquanto nos movemos e por isso mudamos os contextos ao nosso redor.
O livro é contado a partir do ponto de vista de Shevek, um jovem físico que habita Anarres. Este planeta tem um ecossistema árido e de poucos recursos naturais. Nele, as pessoas se organizam a partir de uma gestão anarquista. Anarres foi anteriormente colonizado por seu planeta gêmeo, Urras, onde os recursos naturais são abundantes. Neste planeta, diferentemente do seu gêmeo, existem governos e Estados que dominam a riqueza natural e seus territórios, dividindo-se em dois modos de vida predominantes, um capitalista e o outro socialista. Pelo contexto em que o livro foi escrito, Le Guin tece relações entre as disputas em Urras com a Guerra Fria, na qual os Estados Unidos e a URSS disputavam e apropriavam-se de territórios — físicos e ideológicos — a partir de seus modelos econômicos, sociais e políticos.
Os Despossuídos permite reflexões a respeito destes modos de vida experimentados concomitantemente até os anos 80, colocando-os em perspectiva a partir do olhar de Shevek. O ponto de vista anarquista e quase sempre estrangeiro do físico permite que olhemos estes modos de organização de vida de uma maneira ricamente comparada. Talvez por isso, Ursula escolheu escrever o livro a partir de duas temporalidades diferentes, que se sobrepõem e complementam ao longo da construção narrativa.
Começamos o livro com a partida de Shevek para Urras, sendo ele mesmo renegado por seus conterrâneos de Anarres por sua escolha de compartilhar descobertas científicas com os habitantes do planeta irmão. Segue-se a partir de então uma costura entre o Shevek físico — viajante, conhecendo Urras, seus sistemas políticos e personagens, cujos interesses em seu desenvolvimento científico o fazem ser bem recebido — e o Shevek que cresceu em Anarres, de sua infância até sua formação e partida do planeta natal. Já na primeira passagem da história, Le Guin nos informa que o limite, a ambiguidade e o estranhamento serão companheiros ao longo da narrativa.
“Havia um muro. Não parecia importante. Era feito de pedra bruta e argamassa grosseira. Um adulto conseguia olhar por cima dele, e até uma criança conseguia subir nele. No ponto em que atravessava a estrada, em vez de ter um portão, ele degenerava em mera geometria, uma linha, uma ideia de limite. Mas a ideia era real. Era importante. Por sete gerações não houve nada mais importante no mundo do que aquele muro. Como todos os muros, era ambíguo, com dois lados. O que ficava dentro ou fora do muro dependia do lado em que se estava.” (p. 8)
As alegorias construídas pela autora sobre os planetas nos coloca em uma perspectiva crítica em relação às formas de vida de Urras e também de Anarres. Apesar de entender-se enquanto anarquista, Le Guin está longe de escrever de forma acrítica sobre a filosofia e prática política que acredita. Sua obra é carregada de complexidades e divergências inerentes às organizações humanas.
Ursula K. Le Guin enriquece a discussão sociopolítica sobre os planetas com questões a respeito das subjetividades e desejos dos seus habitantes. As comparações macropolíticas se desenvolvem permeadas pelo relacionamento e afeto de Shevek com seus genitores — as relações familiares em Anarres não se ancoram em núcleo disposto de pai e mãe —; com seus amigos e companheiros de escola — cada um dos personagens lida de modo distinto com a organização anarquista de seu planeta, aceitando-a ou questionando-a em diferentes graus —; com sua companheira — em Anarres, as relações sexuais e afetivas não almejam o casamento e a longevidade. É a partir de sua vida que experimentamos Anarres. Desde suas formas distintas de relacionamento, da repreensão da posse enquanto conceito fundador da organização social, dos sensos de igualdade, liberdade e justiça trazidos por Le Guin: “A obrigação do indivíduo é não aceitar nenhuma regra, é ser o iniciador de seus próprios atos, é ser responsável”. A leitura é repleta de maravilhamentos, mas também de questionamentos humanos incansáveis ao status quo e às diversas roupagens que podem assumir conceitos e práticas. Por exemplo, sobre a autoridade em Anarres: “A ausência de intensificações ou imposições de autoridade deixava a autoridade real evidente. Existem pessoas com autoridade inerente; alguns imperadores têm, na verdade, roupa nova” (p. 376).
Assim como podemos vislumbrar uma forma de vida outra, distinta da sociedade envolvente que experimentamos, também nos é trazido uma possibilidade de estranhar nossas semelhanças e colocar em perspectiva modos de vida que nos são conhecidos e comportamentos naturalizados. A autora nos possibilita experimentar, com Shevek, um estranhamento poroso daquilo que pode nos parecer próximo. Na dificuldade de entendimento cultural e linguístico do planeta gêmeo, Shevek nos faz questionar certas verdades estanques. E talvez por isso que o livro me trouxe tanto à tona essa acuidade crítica que abraça as complexidades humanas para além de sistemas.
Curioso é que, para escrever este texto, além de ler o livro, pesquisei um pouco para contextualizá-lo e alguns reviews o colocavam como desesperançoso. Acho curioso esta interpretação, mas a compreendo. Ursula K. Le Guin nos confronta analisando pelo menos três sistemas políticos e não nos prometendo paz e felicidade eterna em nenhum deles. Ao contrário, faz com que saibamos da complexidade das relações entre subjetividades humanas e também que uma piora em nosso modo de vida pode estar sempre ali, à espreita. E também faz com que pensemos que melhorar conjuntamente é sempre possível e acessível. Nada nos é dado, mas também nada nos é definitivo. Assim, o livro me fez esticar os músculos e caminhar com as pernas e a cabeça para outro horizonte. Não um tranquilo, mas talvez brilhante: “Para ela e para ele, não havia um fim. Havia um processo: o processo era tudo”.
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Este texto é o primeiro de outros. Em breve, trarei para a Aboio “Outros exercícios imaginativos de futuros — parte II” sobre um livro da Octavia Butler — também mulher autora de ficção científica, e pioneira de um movimento afrofuturista americano. Além disso, Os Despossuídos é o primeiro livro do Ciclo Hainiano, do qual A Mão Esquerda da Escuridão (talvez o maior sucesso de Ursula K. Le Guin) também faz parte. Possivelmente ele figure aqui em um outro texto, pois suas construções sobre gênero e ficção são igualmente inspiradoras. Até lá, futuros melhores para nós.
Os Despossuídos. Ursula K. Le Guin. Editora Aleph. 2017.